A FIDELIDADE À TERRA
Estudos sobre Assim Falou Zaratustra
(Cia das Letras, 2011, trad. Paulo César de Souza)
por Eduardo Carli de Moraes
Podemos considerar Assim Falou Zaratustra como um escrito religioso? Estamos diante de uma tentativa nietzschiana de compor uma nova bíblia ou algo a ser reverenciado como sagrado? A estas questões podemos seguramente responder negativamente: em sua autobiografia, Ecce Homo, Nietzsche é explícito em afirmar que ali não fala nenhum fundador de religião e que seu autor prefere ser considerado mais um sátiro do que um santo. Ademais, a filosofia do autor de O Anticristo e O Crepúsculo dos Ídolos inclui um vasto empreendimento de desmistificação e crítica da religião: o conjunto da obra nietzschiana está repleta de dinamitações das idolatrias e das superstições, sendo evidente que Nietzsche jamais pretendeu escrever algo a ser sacralizado ou solidificado em dogma.
A edição brasileira da Companhia das Letras traz em sua contra-capa, por exemplo, a ideia de que “o profeta Zaratustra deixa seu esconderijo nas montanhas para pregar aos homens um novo evangelho”, formulação equívoca e que certamente desagradaria ao próprio Nietzsche, que jamais se mostrou desejoso de escrever um “novo evangelho”. E nada lhe causava mais horror do que a perspectiva de um dia ser canonizado! Preferimos considerar o Zaratustra como uma obra-de-arte, um livro onde as fronteiras entre a filosofia e a literatura, o pensamento racional e a poesia lírica, o misticismo e a música, são dissolvidas. Uma obra em que aparecem unidas a crítica social, a busca pelo conhecimento e a ânsia de criar beleza. Um monumento da criatividade humana onde a ética e a estética dão as mãos. Nietzsche compôs um livro impregnado de lirismo e eloquência poética, cheio de elementos lúdicos e satíricos, que revela muitos traços da influência exercida sobre ele por alguns de seus autores prediletos – como Hölderlin, Heine, Byron e Goethe. Ademais, o livro carrega um alto grau de musicalidade, podendo ser designado como um “poema sinfônico”, como frisa Paulo César de Souza:
“Nietzsche tinha uma preocupação extrema com a sonoridade das frases, e sempre recordava que ler, para os antigos gregos, significava ler em voz alta. (…) A arquitetura de Assim falou Zaratustra tem alguma afinidade com obras musicais. Não tanto porque as quatro partes corresponderiam aos movimentos de uma sinfonia, mas pelo empenho em dar expressão a muitos tons e sentimentos. (…) O compositor Gustav Mahler, por exemplo, disse que o Zaratustra ‘nasceu completamente dentro do espírito da música’. O que não chega a surpreender, sendo Nietzsche o filósofo que mais intensamente se envolveu com música e tendo sido ele próprio um (modesto) compositor.” (SOUZA, P.C. Posfácio à “Assim Falou Zaratustra”. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2011. Pg. 345.)
Vale lembrar que a obra de Nietzsche também inspirou a composição homônima de Richard Strauss, composta em 1896 e cujas 9 partes são todas batizadas com nomes de capítulos do Zaratustra; a abertura, que representa o nascer do Sol, tornou-se célebre ao ser utilizada por Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisséia Espacial (1968).
Compreendido no contexto das outras obras de Nietzsche, marcadas por uma hostilidade escancarada em relação ao cristianismo e por uma crítica feroz de toda “moralidade de rebanho”, torna-se evidente que Assim Falou Zaratustra é uma obra que destoa dos escritos ditos “sagrados” pela profusão de conteúdos ímpios, blasfematórios e heréticos que povoam suas páginas. O Livro I, por exemplo, termina com uma máxima claramente atéia, na qual o crepúsculo dos deuses e a aurora de uma nova humanidade são anunciados como fenômenos consecutivos: “Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem!”
Se os profetas das mais variadas tradições religiosas exigem de seus seguidores a fidelidade absoluta e a obediência completa, Zaratustra, pelo contrário, é aquele que recomenda a suspeita e a desconfiança em relação a todos os profetas, a começar por ele próprio: “afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! (…) Retribuímos mal a um professor, se continuamos apenas alunos. E por que não quereis arrancar louros da minha coroa?” (Livro I, Da Virtude Dadivosa, #3). Palavras escritas por um filósofo que se auto-denominava um “mestre da suspeita” e que dizia que todo autêntico pensador tem o “dever da desconfiança”!
Vê-se claramente que não estamos diante de um mestre que exija subserviência e submissão, mas sim de alguém que convida seus alunos ao pensamento independente e à vontade própria. Isto se torna ainda mais claro na parábola sobre o camelo, o leão e a criança (“Das Três Metamorfoses”): nela, o camelo é símbolo de uma reverência servil, de quem “se ajoelha e quer ser bem carregado” (Livro I, Das Três Metamorfoses, p. 27). Esta besta-de-carga, que renuncia à sua vontade própria e deixa que seu lombo seja carregado com pesados fardos, este triste camelo resignado e sofredor, é o que Zaratustra nos exorta a enxotar de nosso espírito com um rugido leonino!
No Livro III, Nietzsche retoma o tema quando versa sobre seu arqui-inimigo, o “espírito de gravidade”, frisando que a batalha de Zaratustra é contra tudo o que é imposto – como cruz! – às costas dos humanos, tornando-os vergados, corcundas, forçando-os a cair de joelhos. A rebeldia do leão que diz “não!” é, portanto, uma etapa essencial na metamorfose do espírito em sua caminhada rumo à possibilidade de se transformar num genuíno criador.
“Quase no berço já nos dão pesados valores e palavras: ‘bem’ e ‘mal’ – é como se chama esse dote. (…) E nós – carregamos fielmente o que nos dão em dote, em duros ombros e por ásperas montanhas! E, se suamos, nos dizem: ‘Sim, a vida é um fardo!’ Mas apenas o homem é um fardo para si mesmo! Isso porque carrega nos ombros muitas coisas alheias. Tal como o camelo, põe-se de joelhos e deixa que o carreguem bastante. Em especial… o homem no qual é inerente a veneração: demasiados valores e palavras pesados alheios põe ele sobre si – e então a vida lhe parece um deserto!” (Livro III, Do Espírito de Gravidade, #2, p. 184).
Claramente se vê que a reverência acrítica, a obediência à figuras de autoridade, a servidão voluntária, parecem abomináveis a Nietzsche, um dos filósofos que mais ardor pôs em denunciar a tendência a obedecer-sem-pensar. São inumeráveis as ocasiões em que Zaratustra critica a covardia de seguir-o-fluxo, indo onde o rebanho vai: nada mais detestável do que uma pessoa que, em tudo que faz, é uma mariazinha-vai-com-as-outras ou uma obediente seguidora de ordens que descem da boca do opressor, do governante, do sacerdote. O que Zaratustra busca não são crentes, papagaios de sua doutrina, repetidores de dogmas, disseminadores de uma decoreba, veneradores imbecis de autoridades transformadas em estátuas:
“Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração tombar? Cuidai para que não vos esmague uma estátua! Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Sois os meus crentes: mas que importam todos os crentes? Ainda não havíeis procurado a vós mesmos: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco todas as crenças. Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós.” (Livro I, Da Virtude Dadivosa, #3)
Seria pois legítimo chamar de profeta uma figura que detesta os crentes, que não deseja ser o pastor de um rebanho uniforme e que recomenda a cada um que siga a trilha da independência? Zaratustra não seria muito mais o anti-profeta, hostil a todos os pastores, arredio ao autoritarismo daqueles que desejam ser seguidos, obedecidos e venerados? De fato, Zaratustra veicula críticas severas àqueles que agem sempre por “instinto de rebanho”, motivados por um impulso gregário que os leva se unirem em seitas para fugirem de si mesmos. Só julgam insuportável a solidão aqueles que não suportam a companhia de si mesmos – e estes jamais conquistarão nenhuma sabedoria. “Todo isolamento é culpa: assim fala o rebanho…” (Livro I, Do Caminho do Criador, pg. 60)
O fato de Zaratustra ter escolhido o isolamento voluntário nas montanhas, onde viveu como um eremita por 10 anos, explicita que se trata de uma figura que, como outras na história religiosa, buscou a iluminação através da meditação solitária – de modo semelhante, por exemplo, a Sidarta Gautama (o Buda). Contra a tendência de pastores e pregadores a culpabilizarem aqueles que se desgarram do rebanho, Zaratustra afirma que a sabedoria só é possível para aquele que tem a ousadia desse desgarramento. “De companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos… Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho! Para atrair muitos para fora do rebanho – vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores.” (Prólogo, #9, pg. 23)
A essência dos ensinamentos zaratustrianos vão num sentido radicalmente contrário à mensagem de quase todos os profetas religiosos: Zaratustra não exige fé nem esperanças supraterrenas; afirma que não existem transcendentes paraísos nem infernos; nega que exista vida após a morte do corpo; afirma que Deus está completamente morto e se auto-denomina o “sem-deus”… Em suma: se Zaratustra pudesse ser chamado de profeta, teríamos que compreendê-lo como uma espécie revolucionária de profeta ateu, que jamais fala sobre um vindouro Reino de Deus, nem de qualquer Redenção dos Pecados. Se há a presença forte do futuro nos ditos de Zaratustra, trata-se sempre do futuro da Terra e da Humanidade, jamais de um suposto Além-Mundo post mortem.
No capítulo Dos Sacerdotes, do Livro II, torna-se explícita a antipatia que Zaratustra sente por seus “inimigos”, os sacerdotes, que “lhe causam pena e também ofendem seu gosto”:
“Para mim, são prisioneiros… Aquele a quem chamam Redentor lhes pôs correntes – cadeias de falsos valores e palavras ilusórias! Ah, se alguém os redimisse de seu Redentor! (…) Canções melhores eles teriam de me cantar, para que eu aprendesse a acreditar em seu Redentor: os discípulos deste teriam de me parecer mais redimidos! (…) Em verdade, seus redentores mesmos não vieram da liberdade e do sétimo céu da liberdade! Em verdade, eles mesmos nunca andaram sobre os tapetes do conhecimento! O espírito desses redentores era feito de lacunas; mas em cada lacuna haviam posto sua ilusão, seu tapa-buraco, que chamavam de Deus.” (Livro II, Dos Sacerdotes, p. 87)
As crenças religiosas, como é tão recorrente na obra de Nietzsche, são explicadas a partir da psicologia, ou seja, a partir de “carências” humanas que estas crenças nascem para remediar – em linguagem zaratustriana, portanto, Deus é a invenção de homens que o criaram como “tapa-buraco” para suas lacunas. Uma perspectiva semelhante sobre a gênese das idéias religiosas, consideradas como fruto das fraquezas e insuficiências humanas, encontra-se em muitos autores contemporâneos ou posteriores a Nietzsche – como, por exemplo, Feuerbach, Max Stirner, Karl Marx e José Saramago.
No Livro IV, quando Zaratustra encontra o personagem do “Último Papa”, uma espécie de figura crepuscular de uma religião moribunda, explicita-se ainda mais o que Nietzsche rejeita no monoteísmo e na divindade como a imagina a tradição judaico-cristã. A ideia de um deus colérico, vingativo, que age através de dilúvios e bolas de fogo, que comete os mais gigantescos genocídios, que ameaça com punições infernais e seduz com recompensas celestiais, tudo isso parece abominável aos olhos de Zaratustra: “Quem o exalta como deus do amor não tem o amor em alta conta. Não pretendia também ser juiz esse deus? Mas quem ama, ama acima do prêmio e do castigo. Quando ele era jovem, esse deus do Oriente, era duro e vingativo, e construiu um inferno para o gozo de seus favoritos…” (Livro IV, Aposentado, p. 247).
Em uma carta da época em que redigiu Assim Falou Zaratustra, endereçada a seu amigo Franz Overbeck, Nietzsche descreve “o espanto que sentiu ao presenciar, em Roma, devotos que subiam de joelhos a escadaria de São Pedro (carta de 20 de maio de 1883)” [Nota de Paulo César de Souza, pg. 322]. Inspirado por este assombro diante dos penitentes, Nietzsche põe na boca de Zaratustra uma série de diatribes contra aqueles que “não souberam amar seu Deus de outra forma senão pregando na cruz o ser humano!” (Livro II, Dos Sacerdotes, pg. 88). As igrejas construídas pelos sacerdotes são descritas como “cavernas” de “luz falseada” e “ar abafado” onde os sacerdotes exigem os atos mais indignos: a submissão e o auto-rebaixamento.
“Sua fé ordena: ‘Subi de joelhos, ó pecadores!’ Quem criou tais cavernas e degraus de penitência? Não foram aqueles que queriam se esconder e se envergonhavam diante do céu puro?“ (p. 87) Claramente, Zaratustra fala contra a pregação sacerdotal que inculca a vergonha, a culpa, a necessidade de penitência e subserviência. Zaratustra não cessa de expressar seu nojo e seu desgosto com uma humanidade que dobra os joelhos diante de falsos profetas e ídolos monstruosos. Zaratustra quer, antes de tudo, retirar o homem de sua cruz, aliviar o camelo do fardo em seu lombo, devolver aos humanos o canto, o riso e a alegria terrestre.
Zaratustra não possui igrejas ou templos onde deseja ver congregados seus seguidores; pelo contrário, aprecia as caminhadas ao ar livre, o cume das montanhas, a paisagem ampla contemplada com brisa no rosto. Poderíamos dizer que nenhum templo de pedra o satisfaria e que, como Dionísio, ele só aprecia cultos a céu aberto. Nietzsche, filósofo demolidor de ídolos, procura dessacralizar e parodiar a imagem solene do Cristo martirizado e crucificado: ao invés da coroa de espinhos, Zaratustra usa uma coroa de flores e se diz discípulo deste “deus carnavalizador” que é Dionísio.
Para Nietzsche, a tradição judaico-cristão acarretou uma terrível decadência para a humanidade, que passou a cultuar o martírio, a auto-renúncia, o sacrifício-de-si, como se a mensagem de Jesus Cristo fosse esta: “carregue resignado a cruz do teu sofrer na esperança de uma recompensa por vir!” Zaratustra é inimigo da cruz, este instrumento de pena capital usado pelos romanos contra milhares de pessoas assassinadas pelo Império! E é uma estranha perversão transformar a mensagem de Jesus de Nazaré, eivada de exortação ao amor ao próximo e à caridade terráquea entre mortais, numa apologia do sofrimento voluntário e do ressentimento impotente que se contenta com a imaginação de outros-mundos! Zaratustra, longe de cultuar o sofrimento redentor, é uma figura dionisíaca, firmemente plantado no jardim terrestre, que não acredita em nenhum mundo transcendente. Como lembra Maria Cristina Ferraz, recuperando as divindades gregas Apolo e Dionísio que tanta importância tiveram na obra de Nietzsche sobre A Origem da Tragédia,
“Dionísio difere de seu irmão Apolo, o deus arquiteto do panteão, fundador de grandes cidades, pois sua morada preferida será sempre um templo ao ar livre, um belo antro sempre verde; e, para os iniciados, um lugar onde cantar o evoé.” (FERRAZ: O Bufão dos Deuses, p. 87) É neste contexto que se deve compreender a fala de Zaratustra (Livro III, Os 7 Selos, # 2), quando este diz “amar até mesmo as igrejas e os túmulos de deuses, quando o olho puro do céu atravessa os tetos em ruína; gosto de me sentar sobre igrejas em ruína.” Como sintetiza Ferraz, “sobre as ruínas do cristianismo senta-se, triunfante, o antigo deus nômade; sobre os escombros da tradição judaico-cristã Dionísio se reapropria dos velhos templos…” (FERRAZ: op cit, p. 88).
2. O ZARATUSTRA HISTÓRICO SEGUNDO MIRCEA ELIADE
O ataque virulento contra as autoridades sacerdotais, os valores transcendentes e as esperanças supraterrenas, marcas tanto da filosofia nietzschiana quanto dos discursos de Zaratustra, não impedem que muitos considerem o “tom” da obra muito aparentado com o de outros escritos “sagrados”. O tradutor brasileiro de Nietzsche, Paulo César de Souza, pondera sobre as “manifestações de um sentimento profundamente religioso” em Assim Falou Zaratustra nos seguintes termos:
“A reverência ante os problemas fundamentais da vida, a intensidade da indagação, a proposta de redenção da humanidade, os conceitos de “sobre-humanidade” e de eterno retorno das coisas, e ainda mais o tom em que tudo isso é expresso, são manifestações de um sentimento profundamente religioso, e remetem a um tempo em que religião, poesia e pensamento mal se distinguiam um do outro, ao período pré-clássico da Antiguidade, tão estimado por Nietzsche.” (pg. 346)
De fato, Assim Falou Zaratustra traz muitas referências e alusões aos livros sagrados das mais variadas culturas. Múltiplas alusões à Bíblia, muitas vezes paródicas, povoam a obra. Como Souza soube tão bem notar, marcam presença também muitos elementos da tradição religiosa oriental, que Nietzsche decerto conhecia e estudava há tempos, a ponto de ter escolhido um verso do Rig Veda hinduísta como epígrafe de Aurora (“há tantas auroras que ainda não nasceram…”).
Como leitor atento da obra de Schopenhauer, Nietzsche decerto adquiriu muito conhecimento sobre a “espiritualidade” oriental que tanto influenciou o autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Já Paul Deussen, com quem Nietzsche estudou filologia na juventude e que foi um de seus amigos mais próximos e fiéis, chegou a escrever grandes e minuciosas obras sobre o tema, com destaque para O Sistema dos Vedanta, que Nietzsche certamente leu, como indicam sua correspondência com este camarada. De modo que o autor do Zaratustra possuía um amplo leque de leituras e saberes a respeito das crenças, mitos, ritos e profetas das mais variadas vertentes religiosas, algo essencial de se manter em mente na decifração de Assim Falou Zaratustra, texto tecido a partir de uma rica inter-textualidade. Por exemplo: os discursos do Buda normalmente terminavam com um “assim falou o sublime”, o que pode ter influenciado o recorrente desfecho das falas zaratustrianas.
Sabe-se ainda que o personagem principal da obra de Nietzsche se baseia numa personalidade histórica, Zaratustra ou Zoroastro, um profeta-poeta que viveu na antiga Pérsia (atual Irã), aproximadamente entre 628 e 551 a.C. Suas doutrinas integram o Zend-Avesta, reunião dos textos sagrados do zoroastrismo. Segundo o historiador das religiões Mircea Eliade, os gathas (hinos) de Zaratustra estão repletos de “poemas enigmáticos suscetíveis de fascinar o não especialista” e “inscrevem-se numa velha tradição indo-europeia de poesia sagrada” (ELIADE: História das Crenças e das Ideias Religiosas, Volume I: Da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis, Ed. Jorge Zahar, p. 289 e 291).
Quanto ao problema da “historicidade de Zaratustra”, Eliade pondera: “Depois de algumas gerações, a memória coletiva já não consegue conservar a biografia autêntica de uma personagem eminente; esta acaba por se tornar um arquétipo, no sentido de exprimir unicamente as virtudes de sua vocação, ilustrada por acontecimentos paradigmáticos específicos ao modelo que ela encarna. Isso é verdadeiro não só para Gautama Buda ou Jesus Cristo, mas também para personagens de menor envergadura… Os gathas, considerados pela maioria dos eruditos como obra de Zaratustra, contêm alguns detalhes autobiográficos que confirmam a historicidade de seu autor. Aliás, eles são as únicas referências de que dispomos sobre sua vida.” (ELIADE, op cit, p. 290).
De acordo com a reconstituição de Eliade, Zaratustra pertencia a um clã de criadores de cavalo e era extremamente pobre; “segundo a tradição, Zaratustra veio ao mundo rindo” (p. 293); adorava uma divindade chamada Aúra-Masda e foi uma das figuras mais importantes da religião masdeísta; “a comunidade a que ele dirigiu sua mensagem era constituída de pastores sedentários”. Zaratustra é um crítico feroz dos sacerdotes “sacrificantes”, “ataca violentamente as pessoas que sacrificam bovinos” e “incita seus companheiros a rechaçar pelas armas os inimigos, o ‘mau’…” (p. 291).
Em sua análise dos textos litúrgicos do zoroastrismo, os Yasna, Eliade comenta que “causam espanto a urgência e a tensão existencial com que Zaratustra interroga seu Senhor: roga-lhe que o informe dos segredos cosmogônicos e que lhe revele seu futuro… Cada estrofe do célebre Yasna é introduzida com as mesmas palavras: ‘Eis o que te pergunto, Senhor – queira responder-me!’ Zaratustra deseja saber ‘quem determinou o curso do Sol e das estrelas’, ‘quem fixou a Terra embaixo, o Céu nas nuvens, de sorte que não caia?’, e suas perguntas relativas à Criação sucedem-se num ritmo cada vez mais intenso.” (p. 292) O Zaratustra persa é portanto uma figura que tenta decifrar os enigmas cosmogônicos, as esfinges das estrelas, de maneira similar às abissais reflexões do Zaratustra nietzschiano sobre a Eternidade.
Nietzsche também explica sua escolha deste personagem, em Ecce Homo, dizendo que Zaratustra foi o primeiro a estabelecer uma dicotomia radicalmente maniqueísta entre Bem e Mal: “Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a roda motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral para o plano metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. (…) Ele criou esse mais fatal dos erros, a moral; em consequência, deve ser também o primeiro a reconhece-lo.” (Posfácio, pg. 339). Eliade concorda que o Zaratustra persa era alguém obcecado com a moral: “o castigo dos maus e a recompensa dos virtuosos são, para Zaratustra, obsessões. Ele não se esquece de interrogar o Senhor sobre a punição imediata de ‘quem não dá o salário a quem o mereceu’. Mostra-se impaciente diante da impunidade dos membros das ‘sociedades de homens’ que continuam a sacrificar bovinos.” (ELIADE: #101, p. 292). “O combate contra os demônios, isto é, contra as forças do mal, constitui o dever essencial de todo masdeísta.” (p. 293)
Eliade também sublinha que Zaratustra e seus primeiros seguidores são tidos por muitos estudiosos como praticantes do “êxtase característico dos xamãs centro-asiáticos” e que estava familiarizado com técnicas xamânicas indo-iranianas. “Na tradição avéstica o próprio Zaratustra gozava da fama de entregar-se ao êxtase” e é “provável que o canto desempenhasse um papel importante” na conquista do transe. Vishtaspa, um dos primeiros discípulos de Zaratustra, responsável pela disseminação de suas idéias e hinos, é descrito pela tradição como alguém que “utilizava o cânhamo (bhang) para alcançar o estado extático” (p. 294). Não é nada absurdo, portanto, supor que haja semelhanças entre este xamanismo masdeísta do Zaratustra histórico e os ritos dionisíacos que Nietzsche sublinha em sua meditação sobre a Grécia do período trágico. Eliade sublinha ainda que a “experiência mística masdeísta é o resultado de uma prática ritual iluminada pela esperança escatológica”.
A divindade adorada pelo Zaratustra persa, Aúra-Masda, “criou o mundo por meio do pensamento, o que equivale a uma creatio ex nihilo” (p. 295). Esta divindade dá ao homem a liberdade de escolher entre o bem e o mal e há uma “viagem dos mortos” a um local de julgamento, onde “cada um será julgado de acordo com a escolha que efetuou na Terra. Os justos serão admitidos no paraíso, na ‘casa do canto’; quanto aos pecadores, permanecerão ‘para sempre hóspedes da casa do mal’ (Yasna, 46:11)”. (ELIADE: p. 297). As semelhanças com a mitologia judaico-cristã que surgirá séculos depois não param por aí, já que
“o ponto de partida da predicação de Zaratustra é a revelação da onipotência, da santidade e da bondade de Aúra-Masda. Ao escolher Aúra-Masda, o masdeísta escolhe o bem contra o mal, a verdadeira religião contra aquela dos daevas. Por conseguinte, todo masdeísta deve lutar contra o mal. Nenhuma tolerância com relação às forças demoníacas… Essa tensão não tardará a solidificar-se em dualismo. O mundo será dividido em bons e maus, e acabará por assemelhar-se a uma projeção, em todos os níveis cósmicos e antropológicos, da oposição entre as virtudes e os seus contrários. Uma outra oposição é apenas indicada, mas terá um grande futuro na especulação iraniana: aquela entre o espiritual e o material, entre o pensamento e o ‘mundo ósseo’ (Yasna, 28:2)” (p. 298-299).
O personagem de Nietzsche, longe de ser construído em fidelidade a seu protótipo persa, é em muitos aspectos a subversão exata deste: se o antigo Zaratustra era um maniqueísta, o Zaratustra nietzschiano é alguém que pretende “ir além do bem e do mal”; se o antigo Zaratustra acreditava na criação a partir do nada (ex nihilo) e numa temporalidade linear, com início no ato criador do cosmos de Aúra-Masda e com desfecho num julgamento final, o Zaratustra nietzschiano concebe o tempo como um círculo ou um anel, afirmando uma eternidade cuja trilha é curva. Em suma, Nietzsche não respeita as características do profeta persa, mas o remolda e subverte até transformá-lo numa figura dionisíaca, dançarina, cantarolante, que santifica a própria risada e é inimiga de todos os camelos carregadores de cruzes.
Publicado em: 05/05/13
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Continue sim, ‘livre’ pensadora maravilhosa.
Sendo músico de orquestra por alguns anos (violino) e adorador de Mahler. R. Strauss etc conheci bem cedo esse aspecto absurdamente musical e poético, esse bufão sério como a meia-noite. Aguardando seus textos… ;o) Obrigado.
Poema “tchouriço” é um “tchouriço”
“tchouriço” é um “tchouriço” nas agrestes terras dos… “tchouriços”.
Está cá e não há osmose que lhe valha… O fiolho nunca há-de ser funcho
uns breves tragos de aromáticos e uns pedaços de raízes…
e fica se logo a passar do Caretos…
!Que é como quem diz..nas nuvens…
e dai navega se num futuro desenhado a painéis
numa atmosfera embriagada..que não deixam adormecer o pecado…
“rais’partam” as ginjinhas
abafam o som do troar dos canhões, e pacíficas meditações…
pintadas.. os canos amaciados o brilho do silêncio..
e assim conhecem-se mais pedras paridas em pétreo reino
ao som de um sempre inspirador toque de gaitas-de-foles..
ou à saia do vinho da casa em jarro..
e depois vem a sobremesa? sorrisos… apenas sorrisos…
«- Atão, stás bô?»«- Ah ca…. me safo..!»,
os menos afoitos a religiosidades, escapolam-se para o tasco
sacralizaçóes cervejeiras, ou lavagem à adega…
olhar de soslaio à aperaltada com excessivo decote
olhar esbugalhado de infâmia pelos largos centímetros de perna “ó léu”
“bandulho” de atenções e os assados por salivares excitações
alternam se os sorrisos com olhares embrenhados…
o legado de uma gravação na retina e o coração a palpitar
junta-se-lhes o “pupino” e “a talhada” de melão por cima do tostão
e desliza o encantamento e fica um “home cm’um tchintcho”.
disse se as bajoujices numa língua que num se percebe nadinha!”…
Depois… ah depois todos os caminhos vão dar a Roma.
Alguns vão.. outros ficam se pela efémera felicidade
ou o êxtase de frustrações encarceradas por um dia…
e assim se dão alianças entre a fome e a vontade de comer
Carlos Ac liberal
Nietzsche e sua eterna briga com o “EU” humano, como veio antes da psicanálise verdadeira não compreendia como a razão humana é torta, ou como ela consegue ser tão torta. As pessoas não são iguais e portanto têm prazeres bizarros como o de ser “camelo de carga de cruz”, há quem sinta prazer na dor autoinfligida, pessoas que não curtem pensar, a explosão das drogas nos dias atuais é um indício da necessidade do escapismo que nem a religião está mais conseguindo alcançar, da cruz ao pó o homem sucumbiu ao “peso” da existência. A busca por felicidade traz mais infelicidade e isso vicia. Sabemos que deus é uma invenção nossa e que a cada dia nascem novos deuses, entretanto é só expressão da nossa fraqueza e frustração pessoal. E sofrer é tão viciante que criaram outros mundos impregnados de sofrimento para cada um continuar a carregar a sua cruz, ou será que os tontos acreditam que irão mudar o seu modo de agir e pensar só por emigrar para outros mundos?
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Paulo
Comentou em 02/06/13